Comentário a "Já não sei se há domingo" de Idália

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6/11/2007 15:11
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Não lendo o poema, isto é, se nos fixarmos apenas no título, há nele algo de perturbador. Incómodo.

E se um dia da semana desaparecesse?
Um qualquer?
Como faríamos, por exemplo, no trabalho?
Como iriamos organizar as nossas tarefas sem, por exemplo, segunda-feira?
Existir algo tão real, e ao mesmo tempo tão impalpável, como um dia semanal requer engenho, observação, sistematização, apropriação, até se tornar parte da nossa língua. Da nossa verdade.
A noção de dia parece óbvia. Cada vez que vemos "...o sol a nascer..." repete-se o dia. E damos a isso um nome: dia.
Depois, se fizermos um exercício de memória, ou escrevermos, quantos sóis (ou dias), precisamos até se repetir um determinado "...luar...". Temos a noção que cada lua cheia (por exemplo) pode ter também um nome. E chegamos ao afamado mês.
Nada tem de especial, mas nomeá-los tem um quê de maravilhoso, se nos pusermos a pensar nisso.

Séculos a aperfeiçoar isto do tempo, e ainda o espanto pode entrar na vida dos poetas, por causa sua.

A escolha de domingo, não é casual.
Para a maioria, domingo é um dia especial.
Segundo os livros sagrados das religiões monoteístas, é o segundo dia consagrado ao descanso.
E o primeiro dia da semana. O começo.
Não é à toa que se chama ao seguinte SEGUNDA-feira. É a segunda jornada.
Mas podemos facilmente achá-lo o último também. Devido à supracitada organização de muitos trabalhos.
O domingo neste caso é uma metáfora à alegria, à retribuição do descanso após o esforço do trabalho semanal, à folga. Até à liberdade (para quem considera o trabalho uma prisão).

O título é colocado em forma de dúvida.
"Já não sei se há..." faz uma rima engraçada a meio, e outra aliteração nos Esses que acrescenta graça.

O título condiciona muito cedo o leitor, e o sujeito poético fica identificado logo ao início, na primeira pessoa.

Um dos critérios de Saúde Mental é a orientação no tempo. Os outros são, no espaço, e na própria pessoa (entre outros).
Alguém que não saiba "a quantas anda" costuma ser mau sinal.

Mas foi isso que o sujeito poético pretendeu no título, que se repete no corpo de texto, mas que parece ser o verso com que se começa.
Acho que, mais do que apenas melancólico, chega a ser violento.

Obliterar, de vez, um dia de semana é ainda mais perturbador (a expressão com que comecei). Se for domingo, então, é o fim da macacada.

Prefiro que acabe segunda-feira.


Já não sei se há domingo


Já tive uma rua inteira
aberta
cheia da luz de domingo
e uma porta deslumbrada
por onde essa luz entrava
completa.

Tinha também um rio
que passava ao pé da porta
de águas mansas e frescas
onde a vida se espelhava
e o meu corpo suspirava
pelo brilho de domingo
das flores
e das borboletas.

E nos meus olhos de mar
sorria a pureza do mundo
cabia um céu de gaivotas

[até deus tinha um lugar]

dentro dos meus olhos de mar
ao domingo.

Já não tenho nada
já não quero nada
já não sei o meu lugar
já não sei se há domingo
nem mesmo se quero o sol
a nascer detrás da noite
a ofuscar o luar
em cada madrugada.

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Criado em: 6/7 5:58
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