Comentário à "7ª Poesia de um Canalha", de Alemtagus
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"Ainda os Pássaros Voavam (7ª Poesia de um Canalha)", de Alemtagus

Julgas que não sei ler o tamanho dos teus gritos
Estridentes ecos dessa loucura escrita em branco
E o azul do céu a trespassar-te o peito que abres
Que não digo quanto devo por te saciar os mitos
Urbanos de olhos fechados na vida só que tranco
Portas e almas do corpo fatiado por esses sabres

O teu tempo é o outro que não me traz o inferno
Do dia a dia a consumir o chão doente que olhei
Para ti como se foras de mais alguém outra vida
Alheia ao acaso de ter sido filho do lado materno
Seio que me deu num aconchego mãe que amei
Tanto o momento onde a coragem foi esquecida

Serve-te destas mãos que se escrevem absurdas
As palavras perfiladas em direcção a um abismo
Que se precipita depois da forca sem mais nada
Por esse mar fora em segredos de gentes surdas
Notas de pauta enroladas num breve eufemismo
Barato que contorce a nossa língua assassinada


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Percurso de leitura nº 25 (se quiser conhecer os anteriores, fica aqui o link)

Há muito que queria comentar um poema do Alemtagus, autor que muito admiro e que, ao longo dos anos, tem vindo a tornar-se um dos mais interessantes deste site, pelo cruzamento da herança clássica (por exemplo, da canção camoniana) com elementos de modernidade (pelo arrojo e originalidade das imagens que usa), o que resulta em objetos poéticos verdadeiramente singulares no universo do Luso-Poemas e não só.

A série "Poesia de um Canalha" foi iniciada em março do ano passado, tendo inclusive direitos de destaque no primeiro "Café com Versos", por ser um bom exemplo da forma como Alemtagus concebe e realiza o seu projeto poético: em conjuntos temáticos que se prolongam ao longo de meses, explorando certas imagens ou determinadas formas fixas de poesia.

O sétimo poema desta série constitui-se como centro de um tríptico que engloba os poemas números seis e oito, que interpreto como uma longa apóstrofe à poesia – um "tu" que é invocado em três momentos distintos, que correspondem a cada uma das sextilhas, e que eu gostaria de sistematizar através de três palavras: provocação, humildade, pedido.

Do título, detenho-me sobretudo no advérbio "ainda" porque me parece mais óbvia a interpretação da expressão "os pássaros voavam", como referência à liberdade poética. Quanto ao referido advérbio torna-se mais interessante por combinar a ideia de simples posicionamento temporal (ou seja, sinónima de "no tempo em que os pássaros voavam") com a ideia de transitoriedade e de nostalgia (isto é, aludindo ao facto de que, atualmente, já não voam, algo que será posteriormente esclarecido ao longo deste comentário).

A primeira estrofe abre com a forma verbal "julgas", em que se faz a afirmação do conhecimento pessoal da poesia, – não enquanto técnica, mas enquanto visão do mundo -- em forma de provocação ou desafio. Desse ponto de vista, fica subentendida a definição de poesia enquanto "gritos/estridentes", "ecos dessa loucura escrita em branco", "mitos/urbanos de olhos fechados na vida" – ou seja, enquanto poder demiúrgico de revelação do poder da palavra.

Mas há um preço a pagar por esse poder criador de "saciar os mitos" da poesia: a dor do autoconhecimento, quando a poesia vem "trespassar o peito" ou usar os seus "sabres" para "fatiar" "portas e almas do corpo" (talvez haja aqui uma referência às múltiplas identidades que se abrem ao "eu" quando acede à sabedoria poética).

Um pormenor de particular expressividade está relacionado com o verbo "dever": que pode ser interpretado enquanto obrigação ou enquanto dívida: ambas apontando para o facto de que, para o "eu", a poesia não é um divertimento, um luxo de erudito, mas algo que -- como diz no primeiro poema da série -- "corre nas veias", um "mal que me afoga", algo que o invade e que é a sua própria essência.

Disse anteriormente que se poderia sintetizar a segunda estrofe na palavra "humildade". Sinto que, depois de um primeiro momento de euforia do poeta, há um apaziguamento em que reconhece que não é ele que domina a poesia, mas que é ele o dominado. É o tempo de esquecer a "coragem" e aceitar que a poesia é como uma "mãe" que lhe dá o "aconchego" para levantar os olhos do "chão doente" e ultrapassar o "inferno" da existência. Todavia, essa capacidade da poesia de serenar o sujeito poético pareceria algo que não lhe pertencia inteiramente, que seria "de mais alguém". Daí, a meu ver, o desfecho do poema se constituir como pedido.

Na terceira estrofe, impelido pela humildade que sente perante o poder "maternal" da poesia, o sujeito pede-lhe que se sirva dele para ser seu veículo, para chegar mesmo a quem é insensível à magia das palavras e da sua utilização lírica – essas "gentes surdas", que "contorce[m] a nossa língua assassinada". O poeta dá a entender que este pedido é inútil e absurdo, atendendo a uma das últimas imagens do poema, em que se dá a morte das palavras, caminhando em "direção a um abismo", já depois da morte pela "forca", símbolo maior da asfixia a que está sujeita a língua quando limitada ao seu valor denotativo, literal.

Criado em: 12/6 14:55
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Re: Comentário à "7ª Poesia de um Canalha", de Alemtagus
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24/12/2006 19:19
De Montemor-o-Novo
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Dás ao texto um poder quase platónico e, simultaneamente, bíblico. Escorre-me pelos olhos a vontade de dizer que nem eu faria melhor análise, o que acaba por ser verdade, eu seria incapaz de "chafurdar" as entranhas do poema e retirar cá para fora tudo o que têm de belo e de significante. Conseguiste fazer a ligação dos versos através da última palavra de cada um, o que, digo-te, por vezes passa despercebido ao leitor comum. Leste-o como eu o escrevi, o que me dá um prazer incomensurável por ter sido reduzido a pó, eu, o escritor e eu, o leitor. Excelente interpretação, magnífica leitura.

Criado em: 12/6 17:04
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Re: Comentário à "7ª Poesia de um Canalha", de Alemtagus
Administrador
Membro desde:
2/10/2021 14:11
Mensagens: 462
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O poema é que faz a leitura e os teus poemas são extraordinários, Fernando.

Fiquei a apreciá-los ainda mais depois do Café com Versos, em que tivemos oportunidade de conversar, entre outros aspetos, sobre a influência que Camões tem na tua escrita. Esse lado platónico e bíblico tem a ver com isso, naturalmente.

Quanto à ligação entre versos, o chamado "enjambement" ou encavalgamento, é um dos fatores que traz modernidade à tua poesia. Com este recurso permites ao leitor uma dupla leitura: a que é determinada pela rima e a que une os versos de acordo com a sintaxe. É um espaço de exploração das [des]continuidades do pensamento, que surpreendem o leitor e estimulam o voltar atrás e reler com outro ponto de vista.

Não é poesia fácil, nem de construir, nem de interpretar, o que a torna particularmente aliciante. Não é elogio fútil, é algo que qualquer um pode constatar.

Um abraço e venham mais!

Criado em: 12/6 19:10
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