Comentário a "MORRER DE VÉSPERA", de EricoyAlvim
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2/10/2021 14:11
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"MORRER DE VÉSPERA", de EricoyAlvim

cansei de morrer de véspera

espero o final dos tempos
esquentando a alma numa fogueira
em baixo do arco-íris

todos os venenos
circulam nos meus olhos
a última lágrima é uma adaga

afiada no sorriso da deusa

arranco lascas do caos
e faço a lua
que os idiotas cultuam nos sonhos

o analfabetismo dos bruxos
pouco importa aos anjos
e demônios que bebem em serviço

eu vago aonde a maré
grita pelas conchas
a escala do apocalipse

e não tenho medo do castigo
comigo a alma morreu
aonde o dano é além do perigo

e a tempestade derrubou as estrelas
levando embora quem sonha com abrigo


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Percurso de leitura nº 2 (se quiser conhecer os anteriores, fica aqui o link)

Aproveitemos a proximidade da festividade do Halloween para analisar um poema que fala de bruxos e demónios, luas e fogueiras.

O título, só por si, já mereceria o comentário.

A palavra "véspera" é de uma riqueza singular. Normalmente é utilizada como a designação do dia imediatamente anterior àquele em que nos encontramos. Mas este não é o único sentido. Por exemplo, no plural, designa um dos momentos da "Liturgia das Horas", a oração das comunidades religiosas, sobretudo das monásticas. Esta aceção da palavra está relacionada com o seu significado latino: referia-se ao final da tarde, quando surgia no horizonte a estrela Vesper, ou seja, o planeta Vénus. Daí vem o nosso adjetivo "vespertino".

A associação com o verbo morrer é feita de forma muito expressiva com a preposição "de", que pode apontar para uma relação de tempo, de origem ou de causa com a palavra seguinte. Ou seja, "morrer de véspera" poderia significar "morrer na véspera", "morrer a partir da véspera" ou "morrer por causa da véspera".

O primeiro verso toma estas palavras e acrescenta a expressão "cansar de", designando fatiga ou, por outro lado, desistência de algo.

As combinatórias destes termos são várias e algumas delas particularmente interessantes.

"Cansei de morrer de véspera" será a renúncia à angústia por antecedência? Poderá ser a exaustão de viver como morto na contemplação de algo espiritual? Terá algo a ver com o definhar do sentimento amoroso, como um dia a cujo fim contemplamos sem agir?

Um parêntesis: às vezes, um comentário pode parecer-se perigosamente com uma teoria da conspiração, a combinar elementos e a extrapolar conclusões aparentemente absurdas e inúteis. No entanto, como disse no texto que explica os meus objetivos com estes comentários, trata-se de um exercício pessoal, não mais do que isso e, portanto, tudo é lícito. Que seja o leitor a decidir se vale a pena perder tempo com os disparates do comentador.

No terceto seguinte, temos a primeira referência ao apocalipse, associando a alma e o fogo, algo que pode lembrar o Pentecostes cristão, em que as línguas de fogo desceram sobre os apóstolos e deram-lhe coragem e conhecimento para ultrapassar o receio da perseguição pelos opositores de Cristo. O gerúndio "esquentando" parece indicar que há alguma mudança no "eu", mas lenta, em baixo de um arco-íris, símbolo da aliança entre Deus e os homens, como se a sua resignação lhe trouxesse uma estranha calma.

Se há algo judaico-cristão neste texto, também existe um certo ambiente da Antiguidade Clássica na terceira e quarta estrofes. "Todos os venenos / circulam nos meus olhos / a última lágrima é uma adaga // afiada no sorriso da deusa". A metáfora do monóstico recorda, por coincidência ou não, a forma como Afrodite (a deus Vénus grega) era designada na "Ilíada" de Homero, com o epíteto de "amante dos sorrisos". É que a deusa do amor e da beleza não era propriamente o ser angelical de Botticelli, mas uma deusa terrível e vingativa, como todos os outros do panteão greco-romano.

É por ela inspirado que o "eu" procura sentidos com o verso "arranco lascas do caos", uma construção que implica trabalho, arte e sofrimento. Daí constrói a lua, um tópico tantas vezes usado pelos poetas, que apenas pode ser renovado pelo olhar do "idiota" — uma palavra que originalmente não tinha um sentido pejorativo: em grego, referia-se a algo comum, privado. Ou seja, o "idiota" com o "culto" da lua é aquele que vive a experiência poética como algo subjetivo, como um momento espiritual íntimo.

Na estrofe seguinte, entram os bruxos, aqueles que pela magia tentam interferir nas leis da natureza. O sujeito poético refere-se a eles como analfabetos, olhados com desdém pelos ébrios (anjos e demónios), que têm como função (assim entendo a expressão "em serviço") aceitar simplesmente o que o mundo lhes oferece, sem procurar alterá-lo, sem revolta. O "eu" parece claramente estar do seu lado, sem decidir, contudo, se é o bem ou o mal que o define.

Esta ideia é explorada nas três estrofes finais.
Assistimos à deambulação do sujeito pela praia — usando o verbo "vagar", que sonoramente associamos às vagas marítimas, à ideia de lentidão e ao sentimento de vazio — sem se deixar intimidar perante os gritos de chegada do fim do mundo, com a temeridade de quem sabe bem o que é existir estando destruído interiormente.

O verso "aonde o dano é além do perigo" é uma clara reminiscência do episódio do gigante Adamastor de "Os Lusíadas". Dizia no canto V esta personagem aos navegadores portugueses que a vingança pelo seu atrevimento em "mares nunca dantes navegados" surgiria de forma tão grande e repentina que seria "mor o dano que o perigo". Vejo aqui semelhanças com o estado de espírito do "eu", com um ressentimento interior que parece condenar ao seu destino todos aqueles que se atrevem contra a tempestade em busca das estrelas, desenganando os sonhadores para quem ainda resta alguma expectativa de proteção, o sonho de um "abrigo".


Criado em: 1/11/2021 19:39
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Re: Comentário a "MORRER DE VÉSPERA", de EricoyAlvim
Participativo
Membro desde:
16/9/2021 21:51
De Brasil
Mensagens: 14
Obrigado, meu amigo.
Você é um intelectual de proa, e muito me comoveu a iniciativa.

Criado em: 4/11/2021 12:35
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