Valdevinoxis - Mel de Carvalho é mais do que um nome ou nick. A Mel é talvez das mais inspiradas escritoras do luso, como é que ela surge para a escrita?
Mel de Carvalho - Em primeiro lugar, o meu obrigado por esta oportunidade e acima de tudo pelo imenso carinho com que esta casa me acolheu.
Agora começo por dividir a sua pergunta em pequenas fracções:
Nick - "Mel" ... bom, na realidade não se trata de um nick, não mais é do que parte, em boa verdade, metade do meu nome real - Amélia.
Como já tive oportunidade de comentar com alguns amigos virtuais, desde sempre a família e os amigos me chamaram de Mel(inha); Mel(ita); Mel(zita) etc... Na hora de escolher um nick, neste mundo virtual, confesso que não me ocorreu outro ... e assim, deste modo simples, (re) surge a Mel, dado que a Mel surgiu na escrita no século passado (rsrs)... há muitos, anos ... ou melhor, o gosto pela escrita começou com a capacidade de juntar letrinhas... recordo com algum saudosismo as canjas de galinha da minha casa, em que a minha mãe colocava massa de letras... era um delírio. Os laterais do prato enchiam-se com as palavritas que a Mel(inha) conseguia escrever... tinha então 7 ou 8 anos ...
Bem, mais a sério, a motivação para a escrita decorreu do gosto pela leitura.
Desde sempre os livros foram a minha companhia, os meus "aios" e os meus "amos". Fui uma criança que cresceu muito só. Sem irmãos e com pais muito ocupados, ficava muitas e muitas horas isolada em casa. Vivia na aldeia, ainda que às portas de Lisboa.
Na minha casa não havia o hábito de leituras, os livros escasseavam. Apenas os manuais escolares me acompanhavam e, perdidos num canto da casa, gravitavam uns livros antigos, pertença de um avô falecido, de quem, dizem, herdei não só os olhos (verdes), mas o olhar algo lírico sobre a vida… (o meu livro é-lhe dedicado). À falta de outros, foram esses os meu companheiros de muitas horas…
Em paralelo, tive o privilégio de ter tido uma professora primária de uma grande amplitude de espírito (decorriam os fins dos anos sessenta). Incentivava a leitura, promovia visitas a museus e a espaços sociais (com ela e pela sua mão, visitei as Aldeias SOS). Por essa altura, a Biblioteca Itinerante da Calouste Gulbenkian passou a ser ponto de encontro obrigatório na minha vida. Devorava livros (ou eles devoravam-me a mim?) …
Com o 25 de Abril, devota de causas sociais, cheguei a ser bibliotecária em regime de voluntariado. Corria então o ano de 1977, era Inverno, ninguém saia à noite para ir à Biblioteca… lia eu os livros! Tinha dezasseis anos.
Desta forma, li, talvez não no tempo certo, muitos clássicos que não entendi plenamente … Zola, Maxence Van Der Meersch, Thomas Mann, Tolstoi, Dostoievski, Steinbeck e tantos outros. O Liceu era o meu palco poético, era o local de partilha dos meus poemitas com os amigos, que pacientemente me liam…. E que os usavam para mandar aos namorados … Era uma escrita naif, da qual, nada ou quase nada resta ... confesso que tenho pena.
Depois o ingresso no mercado de trabalho, que foi algo prematuro (17 anos) e a vida familiar esfriaram este “vício” de ler e escrever, que se reacendeu nos anos noventa e me acompanha até hoje, se bem que, há cerca de dois anos tenha trucidado literalmente grande parte dos meus escritos, numa máquina de papel e apagado o seu rasto do computador.
Godi - Um aspecto que gostaria de abordar nessa entrevista contigo é a chamada ‘influência poética’. Eu, particularmente vejo que a chamada “influencia literária” na verdade é uma CONFLUÊNCIA (reunião, junção), de conceitos parecidos entre poetas. Quais são as suas ‘confluências’ principais?
M.C. - Muitas são as opiniões que, nomeadamente através dos meus blogs, me têm chegado a respeito do que poderão, porventura, ser as minhas influências.
No que concerne à "influência poética" imediata, direi que são todos os meus colegas e amigos do Luso e bem como dos outros sites de escrita em que publico (Portugal e Brasil), e a Comunidade Bloguista – blogs que me visitam e eu visito. Todos de alguma forma me influenciam. Uma palavra que seja, pode e é, em muitos casos, razão para que na minha mente surja um poema.
Falando de influências de escritores/poetas consagrados, não sei em boa verdade. Mas talvez Florbela Espanca, Mário de Sá-Carneiro, num registo sombrio e num registo mais surrealista Herbert Helder. Depois existem ainda os outros, os que muito amo: Sophia de Melo Breyner ou Miguel Torga, Irene Lisboa, Vitorino Nemésio ... tantos, tantos...
V. - É um leque bastante heterogéneo...
M.C. - É, na verdade é... tenho uma visão holística do mundo e as minhas escolhas literárias dependem dos dias e dos momentos. Possuo várias Antologias e leio ao sabor da disposição... sem regras.
V. - Fugindo um pouco ao teu aspecto literário, a Mel Carvalho é, também, uma pessoa muito chegada a causas sociais e, nesse sentido, com uma opinião social forte. Nesse âmbito temos o Projecto Gôndola. Fala-nos dele, da tua envolvência e a forma como pretendes que seja global?
M.C. - Com todo o gosto. Como referi atrás, a escrita re-instalou-se na minha vida numa época de reconstrução de identidade, depois de algumas perdas sentimentais (mortes). Nessa altura, decidi soltar a Mel da gaveta e apareço na Blogoesfera tendo como intuito escrever e publicar em parceria. Criei o Projecto Gôndola. A ideia era /é, publicar e doar direitos a ONG’s, que trabalhem com crianças, em especial com crianças de origem africana. Proporcionar recursos de apoios, afinal!
“Gôndola por África”, porque em rigor todos os rios desaguam no mar e o mar não conhece cores, ou fronteiras, ou credos e, África, berço da humanidade, é sem margem para dúvidas, o local do planeta onde a vida das crianças, os seus valores e direitos fundamentais está mais ameaçada...
Tenho grandes esperanças de que, com a ajuda do Luso, os poetas desta casa se venham a disponibilizar para a doar direitos - poemas, contos, etc e, deste modo, a "Gôndola" chegue a quem dela tanto necessita. Gôndola=berço!
V. - África é uma referência muito forte na tua vida.
M.C. - Sim... O primeiro texto que publiquei na net chama-se "A primeira máscara". Lá conto esta minha paixão por África, continente que nunca visitei, curiosamente. Digamos que sou uma branca com alma de negra ou alma negra (rsrsrs).
V. - E o Luso-Poemas? Onde é que o site encaixa? Como é que ele apareceu no teu percurso?
M.C. - Apareceu num fim de tarde de sábado!!!! Ehhh, a sério... foi a Cleo que mo deu de presente. A amizade tem destas coisas. A Cleo, a minha querida amiga Cleo, conhecia-me virtualmente dos blogs e começámos a falar no msn... apresentou-me o Luso e, bem... foi amor à primeira vista.... vivemos colados um ao outro...
V. - No site existem publicados, cerca de 350 textos assinados pela Mel de Carvalho e mais de 1300 de comentários a eles. Demonstra, claramente, que as pessoas não são indiferentes aos textos. Tens alguma explicação para este fenómeno?
M.C. - Não considero fenómeno, de modo algum... sinto que não me são indiferentes e isso, acima de tudo, estimula-me. Mais do que isso, devolve-me a auto-estima que por uns tempos perdi ... (existem momentos assim nas nossas vidas). O que está no Luso foi, raras excepções, tudo escrito depois de me ter registado lá. Escrevo diariamente e, em certos dias mais que um texto ... lamento não poder dar mais atenção aos colegas, lendo-os e comentando-os. Leio e comento, mas não tanto quanto desejaria.
Escrever é-me muito fácil. Como ainda hoje um amigo me disse, sou "imediatista" ... escrevo de rajada.. em minutos ... é quase orgânico. Dai que sinta necessidade de partilhar.
Explicar a atenção que me proporcionam? Não sei … apenas dizer, aqui, como digo sempre: bem hajam!
G. - As diversas tendências de escrita é o grande trunfo do site luso-poemas, sendo que a riqueza, de facto, está na diversidade. Como se dá o teu intercâmbio literário com os poetas e escritores do site? E da participação dos escritores nacionais (portugueses) e brasileiros no site, o que vem a reflectir no teu coração?
M.C. - Dá-se da forma mais natural. Acontece! Aliás, já tive o prazer de fazer duetos com a Edi, por exemplo, que é brasileira. A Isabor é outra das poetisas brasileiras com quem partilho poesia de forma mais próxima... São apenas dois exemplos... não quero citar ninguém, mas sinto que este intercâmbio é a grande riqueza deste site.
Sou a favor de tudo o que seja partilha, porque, como uma vez ouvi: "se te der um dólar e tu me deres um dólar... cada um ficará apenas com um dólar... se te der uma ideia e tu me deres uma ideia, ambos passaremos a ter duas ideias...". Tão só isto...É um privilégio estar inserido nesta irmandade poética, sem margem para dúvidas. Assim sinto o Luso!
V. - E o Livro da Mel? Quando é que vê a luz?
M.C. - Já viu ... tirei dois da caixa ... (rsrsr). Já nasceu. Dentro em breve, suponho estará disponível para venda, se bem que, a apresentação tenha sido adiada dado que vou viajar na próxima semana. Assim, se tudo correr bem, será em Novembro/Dezembro!
V. - Uma prenda de Natal...
M.C. - Poderá ser, se assim o desejarem... uma prenda a sibilar na encosta ... tipo os sininhos das renas do pai Natal ... sim, porque o livrito se chama "Sibilam pedras na encosta" ...
V. - Para nos despedirmos com um "até já", vou-te pedir uma mensagem para quem te lê.
M.C. - Uma mensagem... amigos, soltem a alma, soltem os dedos sobre as teclas, acreditem, confiem ... e, acima de tudo, sejam quem são.
Não existem poetas bons ou maus... existem almas poéticas, almas sensíveis ... deixem que floresçam, que cresçam e que brotem. Jamais se cerceiem... Digamos que, do ponto de vista da poesia, esta é a minha mensagem.
Do ponto de vista da vida em geral: não se demitam nunca de serem cidadãos inclusos e inteiros... não se “esqueçam” de, com determinismo e tenacidade, abrir alas por onde a poesia possa correr...
E , claro, abracem a nossa Gôndola... desde este dia, ela é vossa, ela é a minha "prenda" antecipada de Natal para todos. Do coração! Bem hajam por isso...